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segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Carta a Gilton Garcia

Carta a Gilton Garcia
A respeito do seu livro “AI-5 em Sergipe 40 anos depois - A História Passada a Limpo”
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Meu caro Gilton

Atendi ao convite para o lançamento do seu livro “AI-5 em Sergipe 40 anos depois”, que tem como subtítulo “A História Passada a Limpo”, que ocorreu no último dia 13 na sede da OAB. O wisk estava bom, mas só pude tomar uma dose, pois o dia seguinte era dia de trabalho. Uma pena.
Você deve ter visto que fui um dos primeiros a chegar. Um dos primeiros a entrar na fila dos autógrafos, ainda pequena. Ainda bem, porque depois a fila ficou longa. Lá, eu te disse que o livro merecia uma resenha. Como não tenho competência para tanto, estou fazendo por meio de carta.
Você sabe que fui criado num ambiente hostil à UDN. Por lá, a UDN era algo assim como o inferno. Seus membros, portanto, deviam ser algo próximo do diabo. Era estranho, porque tínhamos alguns amigos fraternos que eram udenistas até a alma, e não pareciam cheirar a enxofre ou coisa que o valha. Mas enfim ...
Nessa lógica, você como lídimo udenista, não era alguém que se quisesse como amigo. O tempo, porém, senhor da razão, vê que a gente pensa cada besteira, não? Aí veio o destino, senhor das nossas vidas, que me fez encontrar o grande amor de minha vida em Ana Maria, neta de Leandro Maciel, e prima de sua mulher, Maria Helena. Por isso nos aproximamos. No começo timidamente, você ainda era udenista. Depois eu vi que o diabo não era tão feito. Você até que era um cara legal. Simpático, bom papo, elegante, um gentleman. Sabe como ninguém, ser um anfitrião. Passei a gostar de você, sinceramente.
Já mantínhamos boas relações, quando você foi eleito deputado federal, numa legislatura em que meu tio, Hélio Dantas também foi. Lembro-me que após uma viagem que vocês dois fizeram juntos, Hélio voltou encantado com a sua simpatia e fidalguia, e do seu poder de resolver qualquer situação mais difícil, coisas que eu já sabia. Por tudo isso, não podia deixar de prestigiá-lo, e de ler seu livro, de uma sentada, como dizemos.
Sei que você já havia publicado o texto em uma série de artigos no Jornal da Cidade. E optou por manter o mesmo texto dos artigos no livro, sem reescrevê-los. Sinceramente não foi a melhor escolha. Como você mesmo diz, quando o AI-5 completar 50 anos, os historiadores recorrerão aos depoimentos e opiniões daqueles que vivenciaram aquela época, já devidamente arquivados nas bibliotecas. Você deveria ter feito uma edição mais apurada, consertando alguns erros de nomes, funções e postos de algumas pessoas, e até grafia de alguns nomes próprios. Devia mesmo ter reescrito o texto, suprimindo repetições, etc.. Essa falha é só uma questão de forma, e não inviabiliza o valor do seu depoimento emocionado.
De fato, não tinha como deixar escapar a emoção. Você foi cassado pelo AI-5 aos 27 anos de idade, quando era deputado estadual e presidente da Assembléia Legislativa, e teve os seus direitos políticos suspensos por 10 anos. Foi abatida em plena decolagem uma carreira política que era fadada ao sucesso. Antevia-se para você o papel de herdeiro político do espólio da UDN, o que o levaria ao governo do Estado, ou, quem sabe, a cargos muito mais altos da República. O livro foi sua catarse.
Mas há pontos, caro Gilton, que são complicados de aceitar. Você atribui a sua cassação aos “poderosos” do Estado. Sua ascensão os estaria incomodando. Afinal, você era um jovem, que ocupava rapidamente espaços políticos. Mas você não diz quem são esses “poderosos”. E é fácil acusar este ente sem rosto, sem nome, sem personalidade. Mas quem diabos são esses “poderosos”?
Estamos a falar do final de 1968, aquele ano fatídico que não acabou, ou do início de 1969. Que eu me lembre, e posso estar enganado, Leandro Maciel continuava sendo o político mais importante das nossas paragens. Havia sido eleito em 1966 para o Senado Federal. Tinha, portanto, mais seis anos de mandato. E, naquela época, uma reeleição de Dr. Leandro em 1974 era considerada coisa certa, favas contadas, portanto estaria no poder, pelo menos até o início dos anos 80, era o que se imaginava. Tanto é assim que em 74, José Carlos Teixeira recusou-se a enfrentá-lo numa eleição ao Senado, preferindo dar a vez ao estreante na política Gilvan Rocha. E Leandro Maciel era a própria encarnação da UDN. Não acredito que tivesse qualquer interesse em prejudicá-lo.
Mas vamos lá. O governador de então, era Lourival Batista, oriundo da UDN, e delegado da Revolução em Sergipe, como destaca você com propriedade. Será que Lourival tinha interesse em apunhalá-lo? Tenho cá minhas dúvidas. Mas você próprio acusa Lourival de não o ter salvado. E você dá a razão. Ele não tinha o menor interesse em sua reeleição para a Presidência da Assembléia. Tinha outro candidato. É bem plausível que Lourival não tenha levantado um dedo ao seu favor. Mas duvido que tenha sido o pivô de sua cassação.
E quem tem mais de poderoso por aqui. Augusto Franco? Que já se consolidava como o maior empresário de Sergipe, que se preparava para a sua eleição vitoriosa ao Senado, que ocorreu em 1970, e vinha de família intimamente ligada à UDN? Também não acredito. Tanto é que o reabilitou para a vida pública ao lhe dar o cargo de Procurador Geral do Estado, fato que você reconhece, com muita propriedade. Há também o seu pai, Luis Garcia, que era deputado federal, e o político mais intimamente ligado a Leandro Maciel. Mas não vamos pensar em seu pai, não é? Ora, certamente que numa lista dos mais poderosos do Estado em 1968, estas pessoas tinham que figurar, obrigatoriamente. Será que elas conspiraram contra você? Lembre-se que você como presidente da Assembléia Legislativa, e com apoio da maioria dos deputados, também deveria fazer parte de um rol dos “poderosos”.
Mas você vai mais longe. Não nomina os “poderosos”, mas dá o endereço. Eles estavam na coligação PSD/PR, os tradicionais inimigos da UDN. Será? O Senador Júlio Leite estava em fim de carreira. Ainda dispunha de mandato de senador até 1970, dois anos, se muito. Mas praticamente não vinha a Sergipe, radicado que estava no Rio de Janeiro, e dava a sua carreira política por finda. José Rollemberg Leite também era Senador, e igualmente tinha o seu mandato até 1970. Se tivesse essa força política toda, teria conseguido impor o próprio nome como candidato ao Senado, no lugar de Lourival Batista, o que não ocorreu. Ou mesmo teria imposto o próprio nome como governador, no lugar de Paulo Barreto, na sucessão de Lourival. Em verdade José Leite só chegou ao governo em 1974, mesmo assim como um nome de conciliação. E você bem sabe que não consta dos anais políticos que José Leite fosse chegado a perseguições políticas, ou vinditas rasteiras. Há ainda Celso de Carvalho, mas que à época já havia deixado o governo, e nem mandato possuía. E Celso, reconhecidamente, toda vida foi um apaziguador, a quem se credita até ter conseguido com o seu espírito uma moderação nas perseguições políticas em Sergipe, nos primeiros tempos da revolução
Ademais, meu caro Gilton, àquela altura vocês já estavam todos misturados na ARENA. Tava todo mundo lá, da UDN, PSD, PR e companhia. Um ou outro gato pingado, como José Carlos Teixeira, que tinha ficado no MDB. E político profissional, meu caro Gilton, tem um instinto de sobrevivência aguçado. Nenhum joga pedras à toa, pois elas podem voltar, tal qual um bumerangue.
Mas você colocou militares ligados ao PSD no meio da conspiração, na figura de um Tenente-Coronel. Não esqueça que em contraponto a esses militares, havia gente mais forte que podia estar do seu lado. Por exemplo, o atabalhoado e violento General Humberto Melo, sergipano que depois foi comandante do II Exército em São Paulo, e comandante do Estado Maior das Forças Armadas. Todo mundo sabe que Humberto Melo era considerado gente da cozinha do Sítio de Dr. Leandro Maciel, capaz de neutralizar manobras de reles tenentes-coronéis.
Não há político profissional santo, caro Gilton. Não os estou a defender. Mas sinto que os “poderosos” pelo menos os do Estado, talvez não tivessem esses poderes todos. Nunca é demais lembrar que, quem apoiou festivamente o golpe de 1964 foi a UDN, com você no meio.
Adorei, caro Gilton, o capítulo que você ridiculariza as acusações de “subversivo” e de “esquerdista” que continham em suas fichas nos arquivos dos órgãos de segurança. O que quer que fossem essas coisas,”esquerdismo” e “subversão”, não combinam com você, não estão no seu perfil. Apesar de que algum desavisado possa ter propalado isso. Você sempre em pareceu um homem de situação. De esquemas de governo. Jamais encetaria ações radicais. Sobre isso, o que quer que escreveram nas suas fichas não passam de tolices. Para se ver como os milicos, principalmente os integrantes da chamada “comunidade de informações” beiravam a idiotia, no seu anticomunismo tacanho, primário.
Lembro-me que uma vez, jovem repórter da Gazeta, entrevistava juntamente com alguns colegas o então deputado Manoel Conde Sobral, que havia se desentendido com o governador. Um colega perguntou se era verdade que ele ia para a oposição. Ao qual, bem humorado, Seu Manoel respondeu: “E eu sou lá homem de oposição, meu filho.” Essa é a imagem que eu tenho de você. Alguém que não é homem de oposição.
Essas leviandades dos militares e dos seus asseclas de achar que todo mundo era subversivo são próprias da época, no auge da guerra fria. Em parte era paranóia doentia mesmo. Em parte era interesse, porque os responsáveis pela repressão tinham que arranjar inimigos. Se não, como é que iriam justificar seus privilégios?
Lembro-me de uma charge do velho Jornal do Brasil, de autoria do impagável Lan. Em Moscou, dois membros do Comintern discutem. Um pergunta: E no Brasil, como estamos? O outro responde: Estamos bem, segundo o Zezinho Bonifácio, tirando ele, o resto todo é comunista. Você deve se lembrar do folclórico deputado José Bonifácio, de Minas Gerais, que era líder do governo, e da ARENA. Talvez para ele, você fosse um perigoso “vermelho”, quem sabe.
Mas você foi mais longe, e me provocou. Usou a boa fé do meu tio Hélio Dantas, para jogar quem leu seu livro contra Orlando Dantas. Disse que a velha Gazeta de Sergipe, e em particular Seu Orlando, fizeram uma odiosa campanha de perseguição a você e a sua família.
Inadvertidamente, ou nem tanto, o que é o mais provável, você utilizou um expediente próprio da época em que foi cassado. Quando alguém queria desacreditar a Gazeta, dizia que era a antiga Gazeta Socialista, exatamente para atiçar os idiotas anticomunistas de então. Critica a mudança do nome da Gazeta como se isso quisesse dizer algo, ou fosse algo que a sociedade sergipana não soubesse. A Gazeta foi fundada como um órgão do Partido Socialista Brasileiro, e, portanto tinha o nome de Gazeta Socialista. Quando foi desvinculada do partido, constituída como empresa, teve seu nome mudado para Gazeta de Sergipe. O mais, caro Gilton, é provocação. Igualzinha a que você disse sofre dos órgãos da repressão.
Quanto à campanha odiosa? Faça favor. Com mil perdões, o que todo mundo sabe é que à época a Assembléia Legislativa não era um dos locais mais recomendáveis. Lá, muita gente se locupletou, outros estiveram envolvidos por terem permitido, e outros ainda por simplesmente terem se omitido. Não quero enumerar os casos, nem pretendo revivê-los, mas quem conhece só um pouquinho da história política de Sergipe sabe muito bem. Quanto a apurações. Todo mundo sabe, e você mais do que ninguém, que à época, não existia um Judiciário independente e um Ministério Público autônomo como temos agora. E o tempo, leva a que muitas coisas sejam relevadas. No fim, os “poderosos” se entendem, e tudo vai para baixo do tapete.
Você acusa ainda a velha Gazeta de ter feito uma sórdida perseguição à sua família, notadamente ao governador Luís Garcia, seu pai. Longe de mim faltar ao respeito, mas a Gazeta apenas era a caixa de reverberação do que as pessoas bem informadas de Sergipe sabiam à época. Há de se considerar também, que àquele tempo, os conceitos de moralidade eram bem mais estreitos. Comportamentos que hoje são até incentivados, à época eram considerados criminosos. Por exemplo: foi notícia durante um mês o fato de um carro oficial do governo do Estado ter sido fotografado na porta do edifício onde o governador Luís Garcia tinha um apartamento no Rio de Janeiro. Na época a sociedade sergipana achava isso um desvio imperdoável. Por mais que você, Gilton, ache normal, ou que outras pessoas hoje achem uma bobagem.
Outro fato, só para situar as coisas, é que à época, as atividades do Estado eram bem mais restritas. Não dando, de modo geral, para enriquecer as pessoas, como se vê hoje. Isso não abona atos que eram e são não éticos. Mas, como fez a própria Gazeta em homenagem ao seu pai, na morte, a gente esquece, como diz a música de Chico Buarque. Desculpe, esse assunto é espinhoso, e é melhor passarmos adiante.
Juntando um ponto a outro, caro Gilton você entrou num terreno movediço, que o bom senso mandaria que se abstivesse. Lá para as tantas você disparou: “Sempre tive em conta que a nomeação de parentes, quando ocorre numa empresa familiar, coloca em jogo dinheiro privado. Já na esfera pública o nepotismo é financiado pelo contribuinte. A consciência disso balizou meus atos nos diversos cargos que exerci”.
Essa é uma daquelas partes que se deve dizer: Menos, caro Gilton, menos. Numa coisa sua família sempre foi elogiada. Seu pluralismo e sua tolerância política. Carlos e Robério Garcia, seus tios, eram comunistas reconhecidos. Antonio Garcia militava no socialismo. Já Luis Garcia atuava à direita, e José Garcia Neto mais a direita ainda. Mas sempre em harmonia. Porém outra coisa que a família sempre foi famosa era pelo sentimento de cuidar uns dos outros. Isso levou a um nepotismo que vocês cultivaram e empregaram. A sua família governou três estados, e em todos houve denúncias de nepotismo. Que o diga a famosa “Oligarcia” como ficou conhecida a atuação de seu tio José Garcia Neto no Mato Grosso do Sul, denunciada não pela Gazeta de Sergipe, mas pela grande imprensa do Brasil. E de você próprio Gilton, lá no Amapá. Portanto, era melhor passar sem esta.
Por fim você faz acusações e insinuações em relação a Orlando Dantas. Diz que a Gazeta aplaudiu o arbítrio do AI-5, quando da sua cassação. E que, algum tempo depois, Orlando Dantas aderiu à revolução, tendo entrado na ARENA, num caso célebre. Como se uma coisa tivesse algo a ver com a outra.
Não estou aqui a defender o AI-5, que foi uma violência, longe disso. O ideal é que as denúncias que à época foram feitas aos ocupantes da mesa diretora da Assembléia tivessem sido apuradas por órgãos independentes, com o direito ao devido processo legal, contraditório e todas as demais garantias democráticas. Na prática, esperar que “os poderosos” deixassem que a impunidade fosse rompida era ingenuidade. O que se vislumbrou, na época, foi a única oportunidade de se atingir , aí sim, “os poderosos”, que encastelados no poder não deixariam, como não deixaram, que houvesse qualquer apuração minimamente independente. Se a Gazeta considerou então, como um dia de independência o da sua cassação e a dos seus colegas, foi exatamente por este fato, de precisar vir uma força externa, para fazer uma varredura no estado. E não por defender o arbítrio. Ademais, não podemos ver 1968, com os olhos do século XXI.
Quanto à adesão de Orlando Dantas à ARENA, considero que foi certamente um erro político. Ele não deveria ter feito isso, é certo. Mas a sua adesão tinha todo um embasamento, ao contrário, por exemplo, da sua, meu caro Gilton Garcia, já em fase posterior. A sua foi unicamente visando uma posição eleitoral. Já Orlando Dantas, não se pode esquecer que vinha das lutas do final da década de 40 e da década de 50, onde se discutia arduamente o desenvolvimento do Brasil. Os políticos progressistas e de esquerda daquela época, defendiam a Petrobrás, o seu fortalecimento, a exploração dos nossos minerais, fortes investimentos estatais em infra-estrutura e na indústria, que dariam a base de um desenvolvimento sustentável. Naquela época, as propostas econômicas do grupo militar, principalmente aglutinados em torno de Geisel e Golbery aproximavam-se muito disso. Certamente Orlando Dantas imaginou que as propostas desenvolvimentistas, eram muito mais importantes que outras questões, como os abusos, que poderiam ser algo passageiros, corrigíveis em pouco tempo. Infelizmente não foram, e ele estava errado. Note-se que, pouco tempo depois Orlando Dantas afastou-se da ARENA. Ele não estava lá por nenhuma posição pessoal. Observe também, caro Gilton, que lá na ARENA, tinha também gente boa, como Severo Gomes, Theotônio Vilela, só para citar esses. Nada é preto e branco. Há matizes.
Nos meus 30 e tantos anos de jornalismo é a primeira vez que não sinto prazer algum em escrever. Naqueles longínquos anos da sua cassação, caro Gilton, eu era ainda criança. Mas de lá para cá, tenho procurado estudar a história de Sergipe e não podia deixar passar em branco, para os arquivos que serão estudados daqui a alguns anos pelos historiadores, fatos que não considero exatos. Você não só fez a sua defesa, mas partiu para o ataque, portanto, vale o velho ditado, quem diz o que quer, ouve o que não quer. Entendo que em sua catarse, você precisava disso. Mas você revolveu os cômoros em que o passado se encontrava enterrado. Deveria ter deixado alguns deles intocados, pois destes podem surgir recordações indesejadas.

Abraços aos seus.

Do seu admirador

Paulo Roberto Dantas Brandão

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